domingo, 18 de março de 2012

Posto de Saúde: só para saudáveis


Elaine Tavares - Palavras Insurgentes: Posto de Saúde: só para saudáveis

eteia.blogspot.com 

Vivia de música o garoto. Assim que escutar é quase um instrumento de trabalho. Naquela noite sentiu que os barulhos diminuíam. Pouco a pouco perdia a audição. Deu medo. Cutuca com cotonete, tampa de caneta, loucuras. Hum... Não deu. “Tens que ir ao Posto de Saúde, guri”, advertiu a tia. Sexta-feira de manhã passou a mão na magrela e foi ao posto. Não tinha esperanças. É difícil ser atendido sem marcar com anos de antecedência. Mordeu a língua. Deu sorte. A enfermeira atendeu. “Isso deve ser cera, pinga cerumim por três dias e depois volta aqui que a gente faz a limpeza”. Saiu sorrindo, estava salvo. 

Três dias depois, já completamente surdo e com uma boa dose de desespero voltou ao posto. Calor de matar, sol rachando. Pedala mais de cinco quilômetros até o posto do Morro das Pedras. “A moça não está, volta amanhã a uma hora”. Não adiantou fazer carinha de triste. Toca esperar. Dia seguinte, uma hora, sol a pino, lá vai ele, surdo total, pedalando até o posto. Estava no mais alto nível do estresse, já eram oito dias sem ouvir direito. “Não, a moça não veio, volta amanhã”. Reclama, xinga, nada. Sem saída, voltou para casa.

No dia seguinte lá vai ele outra vez. Toda a novela. Sentia vontade de chorar. De raiva, de ódio, de impotência. Quem não tem dinheiro precisa se submeter a tudo isso. Nenhuma humanidade, nenhuma preocupação, nenhum interesse pelo ser que está em sofrimento. Aquele foi o pior dia. “Olha, a moça saiu de férias, agora só depois do carnaval”. Surtou. Deu discurso, falou da falta de respeito. Se a moça iria entrar em férias, porque não haviam dito isso no dia anterior? Acaso não sabiam que o posto era longe e que a pessoa em sofrimento fica frágil? Nada, só os olhares insensíveis. “Vá ao Posto do Campeche, quem sabe lá tem alguém”. 

Volta a pedalar mais uns 10 quilômetros até o outro posto. Repete a história toda, já quase tomado pela ira. O mesmo olhar indiferente. “Estamos sem médico. Só depois do carnaval”. Ou seja, qualquer doença haveria de congelar até passarem as festas do momo. Desesperou. Insistiu que era obrigação do estado prestar socorro. “Vá à policlínica que fica ali perto do terminal”. Seriam mais alguns quilômetros de bicicleta. Sol rachando, ouvido latejando, ódio espumando. Mas, estava desesperado e todo aquele empurra-empurra o deixara mais nervoso. Foi-se... Na policlínica toca a esperar, fila e fila, até que finalmente foi atendido. “Não, estamos sem atendente para limpeza de ouvido. Só depois do carnaval”. O guri desabou. Vontade chorar, de derreter, escorrer pela parede, sumir. 

Quando a tia chegou a casa o encontrou prostrado, deitado no alpendre, os olhos em fogo. Conta toda a história, tremendo de indignação. Não adiantara apelar para o estatuto da lei, a Constituição, nada. “Não tem médico, não tem enfermeira, não tem ninguém”. E nada se pode fazer. Vontade de fúria, de matar, de quebrar, todas essas coisas que a impotência traz. Era sexta-feira, carnaval. Ou se resolvia ou não haveria de ganhar o pão. Então, a magia: DINHEIRO! 

A tia ligou para uma clínica particular no centro da cidade. “Tem alguém que faça a limpeza de ouvido? Sim, atendemos 24 horas. É só chegar e pagar 200 reais. 200 reais? Sim! Pois é, simples assim... Sorte do guri ter uma tia que tinha 200 reais. Lá foi ele pegar três ônibus para chegar ao centro. Chegou duas horas depois à clínica. Em dois minutos estava ouvindo. E a gente fica a pensar... E os que não têm a grana? Esses, se f...

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